A Constituição do Brasil segue resistindo na linha de fogo do pacto democrático

Ao não tornar pétrea a vedação explícita a golpes de Estado, a Constituição deixou brechas num país marcado por rupturas, onde a democracia é frequentemente tensionada até seus limites.

Washington Araújo - 19/12/2025

Ao completar 37 anos, a Constituição brasileira de 1988 impõe uma pergunta que, para mim, é menos jurídica do que histórica e política. Avalio que ela envelheceu resistindo — mas resistindo sob tensão constante. Consolidou a democracia após um longo período autoritário, ampliou direitos e reorganizou o Estado, mas passou a ser submetida a um processo quase permanente de reformas que alteraram sua fisionomia original sem romper o regime.

Os números ajudam a dimensionar esse percurso. Entre 1989 e 2025, o Congresso Nacional promulgou 137 emendas constitucionais numeradas, além de seis emendas de revisão aprovadas em 1994, totalizando 143 alterações formais do texto constitucional. Em pouco mais de três décadas, a exceção tornou-se prática recorrente. Não se trata de juízo moral, mas de constatação objetiva sobre o modo como o sistema político brasileiro passou a operar.

Essa característica não pode ser compreendida fora do contexto em que a Constituição nasceu. A Carta de 1988 foi fruto de um processo intenso de reconstrução democrática, conduzido por uma Assembleia Nacional Constituinte que funcionou de 1º de fevereiro de 1987 a 5 de outubro de 1988. E foi no próprio 5 de outubro de 1988, no Plenário da Câmara dos Deputados, que o texto final foi promulgado sob a condução de Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, marcando oficialmente o recomeço democrático após o ciclo autoritário. O país saía de 21 anos de ditadura militar, marcados por censura, cassações, suspensão de direitos e forte concentração de poder.

A Constituinte não foi apenas um evento legislativo. Foi, a meu ver, um gesto político de recomposição histórica. Reuniu forças plurais, interesses divergentes e memórias ainda abertas de autoritarismo recente. A decisão central foi clara: blindar direitos, constitucionalizar garantias e reduzir drasticamente as zonas de arbítrio estatal. A desconfiança do poder, naquele momento, não era teórica; era experiência concreta.

Esse ambiente explica por que a Constituição de 1988 é extensa. São 250 artigos permanentes, acrescidos de um Ato das Disposições Constitucionais Transitórias robusto, concebido para gerir a passagem entre regimes, mas frequentemente prorrogado. Políticas públicas, direitos sociais, regras administrativas e compromissos distributivos foram inscritos no nível constitucional. Foi uma escolha consciente, não um excesso casual.

Na minha leitura, essa opção trouxe ganhos e custos. O ganho foi a criação de uma rede de proteção democrática difícil de desmontar. O custo foi transformar a Constituição em um espaço constantemente pressionado por demandas que, em outros sistemas, seriam resolvidas por legislação ordinária. O texto passou a funcionar como uma construção permanentemente habitada, enquanto reformas parciais avançam sem interromper o uso institucional.

Grande parte dessas intervenções incidiu sobre a organização do Estado. Regras do jogo político, competências institucionais, arranjos federativos e funcionamento dos Poderes tornaram-se alvos recorrentes de emendas. Consolidou-se um constitucionalismo voltado à engenharia institucional contínua, menos comprometido com estabilidade textual e mais com adaptação imediata a crises e rearranjos políticos.

A economia ocupou papel central nesse processo. Em diferentes momentos, o texto constitucional foi acionado para acomodar crises fiscais, redefinir regimes de gasto e criar mecanismos de contenção orçamentária. A Constituição passou a desempenhar função de estabilização macroeconômica, assumindo encargos que ampliaram sua exposição ao desgaste político.

O caso da previdência social é, a meu ver, o exemplo mais emblemático. Reformas estruturais foram realizadas diretamente por emendas constitucionais — EC 20/1998, EC 41/2003, EC 47/2005 e EC 103/2019. Idade mínima, regras de transição, benefícios e regimes de servidores foram inscritos no texto constitucional. Optou-se por constitucionalizar o ajuste.

Ao fazê-lo, o Congresso buscou conferir durabilidade jurídica a mudanças politicamente custosas. Essa estratégia blindou reformas contra revisões rápidas, mas reforçou a percepção de que a Constituição se tornou o instrumento preferencial para resolver impasses estruturais. Na minha avaliação, esse movimento ajuda a explicar parte do desgaste simbólico do texto, ainda que sua legitimidade formal permaneça intacta.

Apesar dessa maleabilidade, a Constituição de 1988 fixou limites explícitos. O artigo 60, §4º, estabeleceu as chamadas cláusulas pétreas: a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais. Trata-se de uma resposta direta à experiência autoritária brasileira.

O Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que essas cláusulas protegem também o núcleo essencial desses princípios. Mesmo em um ambiente de reformas frequentes, há pilares que não podem ser removidos sem comprometer a estrutura democrática. Esses limites funcionam como sustentação obrigatória do pacto constitucional.

É nesse ponto que a comparação com os Estados Unidos se torna reveladora. A Constituição norte-americana foi concebida em 1787 e entrou em vigor em 1789, para organizar um Estado recém-independente e conter o poder central. Nasceu em um contexto de fundação, não de reconstrução democrática após ruptura autoritária.

Seu texto é deliberadamente conciso: sete artigos, complementados por emendas raras. A adaptação histórica ocorre predominantemente pela interpretação judicial, não pela reescrita constante do texto. Direitos e princípios foram sendo atualizados por precedentes, não por reformas sucessivas do texto constitucional.

Aqui, um dado comparativo fala por si. Desde 1789, os Estados Unidos aprovaram 27 emendas constitucionais. Desde 1988, o Brasil aprovou 143 alterações constitucionais. Em pouco mais de três décadas, o Brasil modificou sua Constituição mais de cinco vezes o total de mudanças realizadas pelos Estados Unidos em mais de dois séculos. O contraste não exige adjetivos adicionais.

Não vejo nisso uma superioridade automática de um modelo sobre o outro. Vejo trajetórias moldadas pela história. Os Estados Unidos construíram estabilidade a partir de confiança institucional acumulada ao longo do tempo. O Brasil, ao contrário, precisou escrever na Constituição aquilo que temia perder rapidamente. São respostas distintas a experiências históricas profundamente diferentes.

Para compreender plenamente a Constituição de 1988, é preciso lembrar que o Brasil teve seis Constituições republicanas desde 1889: 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988. A Carta atual foi promulgada 97 anos após a Constituição de 1891 e 99 anos após a Proclamação da República. Não houve, na história republicana, continuidade constitucional prolongada.

Essa sucessão de rupturas ajuda a explicar a ansiedade constitucional brasileira. Cada nova Carta surgiu como tentativa de corrigir falhas da anterior. A de 1988 rompeu esse ciclo ao durar quase quatro décadas. Mas o preço da longevidade tem sido a convivência com reformas constantes, que alteram o texto sem romper o regime.

Há, porém, um ponto que considero um erro essencial da Constituição de 1988: a decisão de não ter inscrito, como cláusula pétrea, a proibição inequívoca dos crimes de tentativa de golpe de Estado e de abolição do Estado Democrático de Direito. Ao blindar a forma do regime, mas não tornar intocável a criminalização absoluta de sua destruição deliberada, o texto deixou uma zona perigosa de ambiguidade. Em países marcados por rupturas recorrentes, a defesa da democracia não pode depender apenas de interpretação posterior ou da coragem circunstancial das instituições; precisa estar escrita como limite intransponível, fora do alcance de maiorias ocasionais, cálculos oportunistas ou aventuras autoritárias disfarçadas de legalidade.

A pergunta final, para mim, não é acadêmica nem abstrata. É uma pergunta de sobrevivência democrática. Ou o Brasil decide tratar sua Constituição como um limite real ao poder — e não como um texto sempre disponível para ser tensionado, contornado ou testado —, ou continuará flertando com o abismo institucional em ciclos previsíveis.

Democracias não morrem apenas quando são derrubadas; muitas apodrecem quando toleram que sua própria destruição seja ensaiada, relativizada ou normalizada. A Constituição de 1988 resistiu até aqui. A questão, agora, é se o país terá maturidade política para defendê-la antes que a próxima ruptura deixe de ser hipótese e se torne fato consumado.

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