A Europa em queda livre

Estagnação econômica, dependência tecnológica e irrelevância diplomática empurram a Europa para um rebaixamento histórico

Washington Araújo - 19/12/2025

Michel Houellebecq nunca escreveu para consolar. Romancista francês conhecido por transformar o mal-estar ocidental em matéria literária, ele construiu, ao longo de três décadas, uma obra atravessada pela ideia de declínio. Em 2014, sintetizou seu diagnóstico com brutal clareza: “A França desistiu do progresso”. Para Houellebecq, a Europa não apenas envelheceu — transformou seus próprios cidadãos em turistas, espectadores dóceis de uma civilização cansada de si mesma e cada vez menos disposta a disputar o futuro

Hoje, essa leitura deixou de ser provocação literária e passou a funcionar como chave interpretativa do presente europeu.

O crescimento econômico do continente, já frágil há anos, aproxima-se perigosamente da estagnação. Até a Alemanha, motor industrial da Europa no pós-guerra, perde fôlego e previsibilidade.

O dinamismo europeu foi substituído por dependências estruturais difíceis de disfarçar: a tecnologia vem majoritariamente dos Estados Unidos; os minerais estratégicos e cadeias críticas passam pela China.

Qualquer analista minimamente imparcial há de concordar que a Europa produz menos futuro e administra melhor sua paisagem — convertida, com eficiência, em vitrine turística global.

Convém evitar caricaturas fáceis.

A União Europeia não precisa criar um Vale do Silício nem competir em escala demográfica com superpotências asiáticas.

Ainda assim, considero ser impossível ignorar o processo de “provincialização” do continente — conceito formulado por Hans-Georg Gadamer, um dos mais influentes filósofos alemães do século XX, para designar sociedades que perdem centralidade histórica sem perceber plenamente as consequências.

As negociações sobre a guerra na Ucrânia escancararam esse deslocamento: a Europa observa, acompanha, comenta — raramente decide. É como se o velho continente tivesse lutado pelo protagonismo para, neste 2025, ter que se contentar com a função de mero figurante.

Esse rebaixamento incomoda, mas não precisa ser vivido como tragédia civilizatória.

Um acerto de contas com o declínio europeu — econômico, político e cultural — pode produzir algo raro na política contemporânea: lucidez.

Depois de um século exercendo poder global com resultados ambíguos, talvez seja hora de abandonar a obsessão pela liderança permanente e aceitar uma condição menos grandiosa, porém mais honesta e sustentável. Querendo ou não, esta deve ser a única saída possível. Melhor perder os anéis mas conservar os dedos. O que vocês acham?

Ao menos Bruxelas já não opera sob negação absoluta. O reconhecimento mais explícito veio de Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu, figura central na preservação do euro após a crise financeira de 2008. Em relatório recente, Draghi listou falhas estruturais profundas: baixa produtividade, perda de competitividade, atraso tecnológico e incapacidade crônica de investimento estratégico. O diagnóstico é sólido; o receituário político que o acompanha, contudo, permanece tímido, fragmentado e excessivamente cauteloso.

As respostas políticas disponíveis pouco ajudam.

A extrema direita oferece isolamento identitário e fechamento de fronteiras como solução mágica para problemas estruturais.

O centro aposta em discursos genéricos sobre remilitarização e inovação tecnológica, quase sempre desconectados de uma estratégia industrial consistente.

A esquerda oscila entre denunciar o excesso de ambição europeia ou aceitar o recuo como destino histórico inevitável.

Falta o que o historiador britânico Eric Hobsbawm, referência mundial na análise das crises do capitalismo, chamou de uma verdadeira “política do declínio”: realista, estratégica, sem nostalgia imperial nem resignação confortável. E a expressão do velho ditado, repaginado ao avesso: a boca entortou o cachimbo, e não o contrário.

Internamente, isso exige romper com o fetiche da austeridade que domina a política econômica europeia desde os anos 1990. O historiador econômico Adam Tooze, professor da Universidade Columbia e uma das vozes mais respeitadas da análise macroeconômica global, foi mordaz ao definir os tecnocratas europeus como “o Talibã do neoliberalismo”.

Convenhamos: flexibilizar regras fiscais, coordenar investimentos e recuperar capacidade produtiva não é radicalismo ideológico — é pragmatismo tardio diante de um mundo que já mudou.

No plano externo, a promessa de autonomia em relação aos Estados Unidos revelou-se ilusória. A dependência apenas se aprofundou. Comprar armas, energia e tecnologia americanas em larga escala não recoloca a Europa na vanguarda industrial; apenas cristaliza sua posição subordinada em um sistema internacional que ajudou a desenhar, mas já não controla.

A soberania proclamada virou retórica; a dependência, prática cotidiana. Não conseguem resolver o problema da segurança do continente, e a guerra na Ucrânia mostra isso de forma contundente. Não conseguem nem mesmo fechar o maior acordo comercial do planeta, que seria aquele que se arrasta há 26 anos de tentativas frustradas para obter algum consenso entre a Europa e o Mercosul.

Reinventar-se exigirá pensamento heterodoxo, inclusive na relação com a China. A integração crítica tornou-se inevitável. A cooperação climática é indispensável, sobretudo porque Pequim lidera hoje grande parte da transição energética global. Submissão estratégica, porém, é inaceitável. Engajar-se com critérios claros, salvaguardas comerciais e interesses definidos é mais realista do que o confronto retórico vazio ou o alinhamento automático.

A experiência britânica serve como advertência histórica.

No pós-guerra, o Reino Unido — potência imperial em declínio — optou por alinhar sua política externa e econômica aos Estados Unidos, trocando autonomia por uma chamada “relação especial”.

Ganhou previsibilidade, perdeu margem de decisão.

A Europa não precisa repetir esse roteiro nem insistir em fantasias de grandeza tardia que já não encontram lastro material.

Em geopolítica e clima, o continente pode cumprir metas sem ser protagonista absoluto. Melhor buscar estabilidade estratégica — o “meio da tabela”, como dizem os ingleses no futebol — do que insistir em liderar um campeonato cujas regras mudaram sem pedir autorização a Bruxelas.

O problema europeu, no fundo, não é apenas econômico ou institucional. É histórico, cultural e mental.

Durante séculos, a Europa confundiu poder com virtude, domínio com civilização, centralidade com destino natural. Essa soberba produziu impérios, guerras e ruínas — e, mais recentemente, acomodação. O continente habituou-se primeiro a mandar, depois a aconselhar, agora a comentar.

E, enquanto não encarar, sem indulgência nem nostalgia, que o mundo já não gira ao seu redor, a Europa seguirá em queda livre: elegante, bem preservada, eficiente como museu vivo — e progressivamente irrelevante como força histórica.

https://www.brasil247.com/blog/a-europa-em-queda-livre