A triagem ética que o Natal nos impõe

A indústria natalina transforma virtudes em embalagens, dignidade em códigos e sentimentos em slogans, enquanto a presença ética real reaparece como gesto radical de humanidade compartilhada.

Washington Araújo - 25/12/2025

Neste Natal, recuso a estética da bondade industrializada, onde sentimentos vêm embalados, prontos para consumo rápido e descarte imediato. Há algo de inquietante nessa conversão dos melhores impulsos humanos em mercadoria: a empatia transformada em slogan, a solidariedade reduzida a gesto performático, a dignidade humana tratada como item sazonal. Prefiro um Natal menos ruidoso e mais honesto, onde valores não precisem de embalagem para existir.
Há afetos que se desfazem quando a consciência desperta, e isso não é perda; é reconhecimento. Não caminho ao lado de quem relativiza o racismo, normaliza a homofobia ou transforma torturadores em heróis públicos. Não é só indiferença: é preservação da minha saúde mental. Limite é uma forma adulta de amor à vida comum. Em tempos de brutalidade normalizada, cuidar da própria integridade ética também é um ato de resistência.
Também não aceito a anestesia moral que tenta converter imagens de crianças mortas em debate abstrato. Quando a realidade grita, negar é cúmplice. Natal não é silêncio conveniente; é o escândalo da compaixão. É escolher ver, mesmo quando ver dói. É dizer que nenhum cálculo estratégico absolve o massacre, nenhuma retórica salva a indiferença. A paz começa pelo nome correto das coisas — e pelo reconhecimento do sofrimento alheio como real.
Talvez por isso eu desconfie da indústria que empacota sentimentos, transforma valores em slogans e reduz a dignidade humana a um QR Code colado na vitrine. O Natal não cabe num código de barras nem se resolve no gesto automático da compra. Ele exige presença, escuta, responsabilidade. Exige que a emoção não seja terceirizada ao consumo.
Aprendi, com o tempo, que as escolhas éticas atravessam os laços porque atravessam a própria ideia de humanidade compartilhada. Sou apartidário, mas sempre defendi valores inclusivos, a solidariedade ativa e a fraternidade entre todos. Desde os 16 anos, há um pensamento que me orienta como uma luz silenciosa e persistente: a Terra é um só país e os seres humanos são cidadãos. Não perdi amigos; distingui os verdadeiros. A vida faz essa triagem sem pedir licença.
O mesmo vale para as relações familiares feridas por abismos de valores: às vezes, preservar a memória do amor de infância é mais honesto do que fingir convivência adulta. Cuidar da lembrança é uma forma de respeito quando o presente se torna impraticável.
Nunca medi convicções por curtidas. Falar é risco, e o risco é o preço da coerência. Desagradar quem precisa ser desagradar não é arrogância; é responsabilidade. A palavra, quando pública, deve carregar lastro. Em tempos sombrios, a comunicação vira abrigo e trincheira — não para humilhar, mas para iluminar.
O horizonte que se desenha exige atenção permanente. Há forças que insistem em nos puxar para baixo, em empobrecer a cultura, em domesticar a imaginação. Num passado não distante, tentaram asfixiar a arte e empurrar a criação para a margem. Mas a história é teimosa: a arte sempre volta a respirar, porque guarda a experiência humana em estado de alerta.
Neste Natal, escolho estar atento e forte. Escolho a coragem serena de quem não confunde tolerância com conivência. Que a mesa seja simples, a palavra franca e o gesto consequente. Que a esperança não seja adorno, mas prática diária. E que a alegria nasça do compromisso com a vida — inteira, indivisível, comum a todos.
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