A urgência governa o tempo
As possibilidades avançam em ritmo acelerado enquanto a responsabilidade encolhe, deslocando decisões centrais para um terreno de urgência permanente
Washington Araújo - 23/12/2025


Ao longo deste ano, escrever foi menos reagir ao noticiário e mais tentar compreender o desenho mais amplo do tempo em que vivemos. Meus textos nasceram da constatação de que atravessamos uma época de contrastes extremos, em que avanços civilizatórios convivem com retrocessos éticos, e em que a promessa de progresso caminha lado a lado com novas formas de exclusão, violência e indiferença.
Desde cedo, percebi que muitos dos temas centrais já não cabem em molduras nacionais. A ideia de uma nova ordem mundial apareceu como consequência inevitável da interdependência entre os povos. Crises climáticas, guerras regionais, cadeias produtivas globais e tecnologias transnacionais tornaram obsoleta qualquer ilusão de isolamento. O mundo passou a exigir menos retórica de poder e mais coordenação, menos força bruta e mais arquitetura institucional.
Foi nesse contexto que revisitei Immanuel Kant, não como exercício filosófico, mas como ferramenta concreta de leitura do presente. Sua ideia de uma paz fundada em regras comuns e responsabilidade compartilhada voltou a fazer sentido diante do esgotamento do modelo baseado na intimidação permanente. A justiça internacional deixou de soar utópica e passou a se apresentar como necessidade prática de sobrevivência coletiva.
O mesmo choque entre progresso e falência estrutural se impôs ao observar a obra de Sebastião Salgado. Suas imagens que correm o mundo a mostrar que a vida é breve, mas a arte é longa documentam um planeta ferido por desigualdades, deslocamentos e devastação ambiental, sem jamais retirar do humano sua dignidade. Ali, a arte cumpre função jornalística: registra, denuncia e preserva memória.
A questão ambiental atravessou meus textos como dado incontornável. Em Nenhum planeta B, o argumento foi direto: não existe alternativa física ou tecnológica capaz de substituir os sistemas naturais que sustentam a vida. Sabemos disso há décadas, mas seguimos adiando decisões. O contraste entre conhecimento e ação talvez seja uma das marcas mais graves do nosso tempo.
No centro dessa reflexão, encontrei eco numa formulação escrita no século XIX, mas que parece descrever com precisão desconcertante o presente em Um conto de duas cidades, Charles Dickens abre seu romance assim:
“Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos, a idade da sabedoria e a idade da loucura, a época da fé e a época da incredulidade, a estação da luz e a estação das trevas, a primavera da esperança e o inverno do desespero. Tínhamos tudo diante de nós, não tínhamos nada diante de nós, íamos todos diretamente para o céu, íamos todos diretamente para o inferno — em suma, a época era tão parecida com a atual, que algumas de suas autoridades mais barulhentas insistiam em que ela fosse recebida, tanto no bem quanto no mal, apenas no grau superlativo de comparação.”
Esse jogo de opostos atravessa tudo o que escrevi. Vivemos um tempo em que a solidariedade se amplia e, ao mesmo tempo, se deixa capturar pela lógica da autopromoção. Ao refletir sobre como boas ações passaram a depender de visibilidade, não critiquei a ajuda em si, mas a transformação do gesto em performance. Quando o bem exige vitrine, ele perde profundidade social.
A tecnologia aparece nesse cenário como força ambígua. Amplia possibilidades, mas dilui responsabilidades. Conecta indivíduos, mas fragmenta comunidades. Informa em escala inédita, enquanto confunde critérios. Não a tratei como solução mágica nem como ameaça absoluta, mas como campo permanente de disputa ética.
Somente mais adiante, em perspectiva histórica, abordei a tornozeleira eletrônica. Ao recordar as formas brutais com que sociedades antigas marcavam seus culpados — mutilações, ferro em brasa, execuções públicas —, o contraste se impõe. A tornozeleira representa uma evolução civilizatória: substitui a violência irreversível por contenção legal, preserva a vida e mantém aberta a possibilidade de reintegração social.
No penúltimo movimento desse percurso, ficou clara minha intenção central: buscar unidade na multiplicidade. Relacionar os grandes dilemas internacionais às experiências concretas do indivíduo. Mostrar que o mesmo mundo que redefine suas estruturas globais redefine também a forma como punimos, cuidamos, convivemos e existimos.
O saldo deste ano não é o conforto de respostas definitivas, mas uma leitura integrada do presente. Um jornalismo que tenta ir além do fragmento, que aposta em contexto, memória e horizonte. Talvez porque compreender o nosso tempo exija aceitar que vivemos, simultaneamente, o melhor e o pior dos mundos — e que a escolha entre eles se faz todos os dias.
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