Clarice Lispector escreve e o chão desaparece. Foi assim comigo, e com você?

A recusa à explicação fácil atravessa toda a sua obra e ajuda a entender por que ela nunca foi uma autora confortável. Ela escreve como quem desconfia da inteligência que se basta

Washington Araújo - 21/12/2025

Ler Clarice Lispector nunca é um gesto tranquilo. Algo se desloca logo nas primeiras linhas, quase sem aviso, como se a linguagem empurrasse o leitor para fora do lugar habitual. Não há espetáculo nem alarde. Há um leve desajuste, uma perda discreta de equilíbrio, que cresce à medida que a frase avança. Quando se percebe, o cotidiano — esse território aparentemente estável — já não oferece o mesmo apoio. Clarice escreve assim: sem prometer conforto, sem pedir licença, deixando claro que a leitura, ali, é sempre uma forma de risco.

Ler Clarice é sentir um pequeno abalo sísmico que começa no cotidiano mais banal e termina num ponto onde as palavras já não servem como abrigo. O ensaísta Baret Magarian definiu com precisão esse efeito ao falar em “choques de reconhecimento”. Mas talvez seja preciso ir além: o choque clariciano não é apenas o de reconhecer algo oculto, é o de perceber que aquilo sempre esteve ali, sustentando silenciosamente a vida comum, enquanto fingíamos estabilidade.

Essa percepção não surge de súbito. Ela amadurece com o tempo, com a leitura insistente, com o retorno aos mesmos textos sob outras idades e experiências. No meu caso, ela me acompanha há décadas e ganhou forma acadêmica em 2004, quando apresentei na Universidade de Brasília a dissertação de mestrado Macabéa vai ao cinema, dedicada às relações profundas entre Clarice Lispector, literatura e cinema. Ao longo dessa pesquisa, conheci Paulo Lispector Valente, um dos dois filhos de Clarice, e também Tânia Kauffmann, sua sobrinha.

Esses encontros, discretos e sem qualquer teatralização, reforçaram uma certeza antiga: Clarice nunca construiu uma personagem pública. Não cultivou mitos sobre si mesma. Seu compromisso era com a escrita — e apenas com ela.

Para compreender a radicalidade dessa escrita, é necessário ouvi-la diretamente. Não como citação ornamental, usada para embelezar um argumento, mas como presença viva no corpo do texto, capaz de interromper o ritmo do jornal e obrigar o leitor a desacelerar.

“Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.”

Clarice desmonta aqui a obsessão moderna pela explicação. Viver, para ela, antecede qualquer sistema racional. A frase não rejeita o pensamento, mas recusa sua tirania, lembrando que a experiência humana excede métodos, conceitos e respostas organizadas. Há uma crítica direta à ideia de que compreender é dominar — como se a vida coubesse inteira dentro de um raciocínio bem formulado.

Essa recusa à explicação fácil atravessa toda a sua obra e ajuda a entender por que Clarice nunca foi uma autora confortável. Ela escreve como quem desconfia da inteligência que se basta. Sua prosa não conduz o leitor pela mão; ela o empurra, com delicadeza e firmeza, para fora da zona segura da compreensão imediata. A língua portuguesa, em suas mãos, deixa de ser instrumento de ordenação para tornar-se instrumento de exposição: mostra aquilo que o entendimento não consegue organizar sem perdas.

Esse modo de escrever não nasce do acaso. Benjamin Moser, na biografia Why This World, considerada a mais consistente já escrita sobre Clarice, recoloca sua origem num eixo histórico de violência e deslocamento que ajuda a compreender — sem reduzir — a forma extrema de sua escrita. Filha de judeus ucranianos que fugiram dos pogroms da Guerra Civil Russa, Clarice nasceu em 1920 em circunstâncias marcadas pela brutalidade do século XX. Moser registra, com cautela e rigor, a narrativa segundo a qual sua mãe, Mania (Marieta, no Brasil), teria sido estuprada durante ataques antissemitas e adoecido gravemente, morrendo quando Clarice tinha apenas nove anos. Trata-se de um ponto sensível, cercado de controvérsias, mas impossível de ignorar quando se observa a insistência clariciana na precariedade da vida e na fragilidade de qualquer forma de segurança.

Clarice, no entanto, nunca transforma esse trauma em tema explícito. Ela não escreve confissões nem relatos autobiográficos disfarçados. O que faz é mais complexo: transforma a instabilidade em forma. Sua escrita não busca redenção, nem explicação causal. Ela aceita a incerteza como condição básica da existência.

“Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.”

Aqui Clarice antecipa, com precisão cirúrgica, uma crítica que hoje parece ainda mais atual: a moral do aperfeiçoamento permanente. O defeito não surge como algo a ser eliminado, mas como parte estrutural da identidade. Há uma intuição psicanalítica profunda nessa advertência: corrigir-se demais pode significar desmontar o frágil equilíbrio que sustenta uma vida inteira, sem que o sujeito perceba o risco que corre.

Essa percepção atravessa seus personagens — especialmente mulheres comuns, donas de casa, figuras aparentemente ajustadas à normalidade social. Clarice escreve contra a fantasia da vida bem arrumada. Seu interesse está no humano imperfeito, contraditório, instável, mas vivo. A língua acompanha essa visão: frases que hesitam, retornam, se corrigem no meio do caminho, como se o pensamento fosse sendo descoberto enquanto se escreve.

Essa mesma lógica orientou sua produção como cronista no Jornal do Brasil, entre 1967 e 1973. Ali, Clarice realizou algo raro: levou a literatura de risco para dentro do espaço do jornal sem diluí-la. Em vez de textos leves ou circunstanciais, escreveu crônicas que funcionam como pequenas armadilhas perceptivas. Partem do trivial — um objeto, um gesto, um animal, um pensamento passageiro — e terminam em zonas onde o leitor já não pisa em terreno firme.

É nesse ponto que a escrita de Clarice deixa de ser apenas literária e se torna uma investigação profunda sobre o próprio ato de existir — sobre o que significa estar no mundo sem garantias, sem identidades prontas, sem explicações consoladoras.

“Agarrava-se a um fiapo de consciência e repetia mentalmente sem cessar: eu sou, eu sou, eu sou. Quem era, é que não sabia. Fora buscar no próprio profundo e negro âmago de si mesma o sopro de vida que Deus nos dá.”

O trecho acima revela o núcleo mais profundo de sua escrita: não a definição do ser, mas a experiência crua de existir. O sujeito não sabe quem é, apenas insiste em ser. A repetição do “eu sou” substitui identidade por presença mínima. A linguagem avança às cegas, tateando um território escuro onde consciência, fé e linguagem se misturam, sem garantias e sem respostas finais.

Clarice escreve nesse limite. Seus personagens não buscam rótulos sociais nem explicações psicológicas completas. Buscam apenas não desaparecer. Por isso sua literatura não envelhece: ela não descreve comportamentos de época, mas estados fundamentais da condição humana.

A redescoberta internacional de Clarice nas últimas décadas — impulsionada por novas traduções e por projetos editoriais cuidadosos — não é moda tardia. É sintoma. Em um mundo saturado por discursos performáticos, por fluência vazia e por respostas automáticas, Clarice reaparece como uma escritora que exige desaceleração, silêncio e coragem para enfrentar perguntas sem solução.

Esse enfrentamento atinge seu ponto mais claro no dilema central de sua escrita.

“Por te falar eu te assustarei e te perderei? Mas se eu não falar eu me perderei, e por me perder eu te perderia.”

Nesta frase, Clarice formula o conflito ético da palavra. Falar ameaça vínculos; silenciar aniquila o sujeito. A escrita surge como necessidade vital, ainda que destrutiva. Escrever é aceitar o risco da perda para evitar uma perda maior: desaparecer de si mesma e trair a própria experiência vivida.

Esse dilema percorre toda a sua obra — e explica por que Clarice nunca buscou agradar. Ela escreve sabendo que pode assustar o leitor. E aceita o preço. Sua literatura não consola. Não protege. Não promete chão. Ela desorganiza para tornar visível.

É por isso que afirmo, com convicção amadurecida pelo tempo, que Clarice Lispector é, de longe, a maior escritora brasileira. Não por unanimidade crítica ou canonização institucional, mas porque nenhuma outra levou tão longe a aposta de que a literatura não serve para organizar o mundo — serve para expô-lo em sua fragilidade essencial.

Clarice escreveu como quem sabia que o mundo pode falhar a qualquer instante. E escreveu para que não esquecêssemos disso. Essa é a verdadeira emboscada chamada Clarice. E dela, ninguém sai ileso.

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