Kant na linha vermelha da falência ética mundial

A política internacional opera sem coerência, normaliza contradições perigosas e converte princípios em ornamentos, enquanto o imperativo categórico reaparece exigindo limites que ninguém mais está disposto a respeitar.

Washington Araújo - 20/12/2025

Em 2025, o mundo amanhece com a sensação de que algo essencial se perdeu no caminho. Guerras que deveriam chocar já não espantam, acordos internacionais parecem redigidos para caducar no dia seguinte e a diplomacia opera como um revezamento de desculpas sofisticadas. É uma manhã sem claridade: clara demais para ser noite, escura demais para merecer o nome de dia. Nesse cenário de desorientação global, as palavras de um filósofo prussiano do século XVIII — que jamais imaginou drones autônomos ou espionagem digital — reaparecem com precisão quase profética. Immanuel Kant, com seu rigor quase artesanal, ainda oferece um critério simples e brutal: agir apenas segundo máximas que se possam desejar como leis universais.

Kant nasceu em 1724, em Königsberg, cidade de portos e ventos frios, onde passou praticamente toda a vida. Filho de um artesão e de uma mãe profundamente devota, cresceu num ambiente que alternava disciplina religiosa e curiosidade intelectual. Estudou física, matemática, astronomia e filosofia, mas foi na ética que encontrou seu eixo. Tornou-se professor, e sua rotina — as caminhadas pontuais, o trabalho silencioso, o estudo incessante — tornou-se tão regular que virou anedota popular. A disciplina, no entanto, não era capricho: era o método para depurar a ideia que se tornaria o coração de sua obra — o imperativo categórico, essa exigência de coerência moral que não aceita atalhos.

Kant morreu em 1804, mas deixou uma pergunta que continua atravessando o nervo exposto do mundo contemporâneo: e se todos agissem como eu?

É uma pergunta que não envelhece porque revela, sem enfeites, o ponto fraco das sociedades humanas: o abismo entre o que se exige dos outros e o que se pratica.

O peso histórico de um princípio que moldou civilizações

A ética kantiana atravessou a civilização ocidental como uma base silenciosa. Ecoa na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, nos debates do constitucionalismo europeu, nos tribunais internacionais que julgam crimes contra a humanidade e nas discussões contemporâneas sobre dignidade humana.

A ideia de que ninguém deve ser tratado apenas como meio — mas sempre também como fim — tornou-se um dos pilares do pensamento democrático moderno. Mesmo quando não citada, é ela que sustenta as estruturas jurídicas que tentam impedir o retorno ao arbítrio.

A história mostra que a convivência entre Estados depende menos da força e mais da previsibilidade ética. Onde há coerência, nasce confiança; onde há exceção permanente, brota desordem. E 2025 insiste em confirmar essa lição de forma dolorosa.

Durante anos em sala de aula, uma inquietação permanente acompanhava as explicações sobre Kant: a tentativa de traduzir o imperativo categórico para jovens que descobriam, pela primeira vez, que a vida social é sustentada por escolhas morais discretas, porém decisivas. Mostrar que o princípio kantiano não era abstração distante, mas um mecanismo sociológico de manutenção do convívio humano, exigia paciência e precisão. Nas discussões, surgia a surpresa recorrente: a percepção de que ética funciona quando deixa de ser espetáculo e passa a ser hábito. Dessa convivência com alunos veio a convicção de que coerência não é luxo ético, mas infraestrutura civilizatória.

2025: o laboratório da exceção permanente

O panorama internacional do ano revela a falência das máximas universalizáveis. Se cada país imitasse as condutas que hoje se legitimam, a humanidade perderia o próprio chão.

Se todos recorressem à lógica territorial russa, fronteiras seriam miragens cartográficas.

Se todos adotassem o padrão de retaliação entre Israel e Irã, proporcionalidade seria apenas palavra de manuais jurídicos.

Se todos seguissem as viradas estratégicas dos Estados Unidos, o multilateralismo se dissolveria numa poeira de tratados descartáveis.

Se todos replicassem a disputa tecnológica irrestrita entre China e EUA, privacidade seria lembrança arqueológica.

Se todos aceitassem regimes migratórios restritivos como solução, direitos humanos se tornariam cerimônia vazia.

O imperativo categórico funciona como uma luz que expõe rachaduras. E a verdade é dura: boa parte do que se pratica na arena internacional não suportaria a universalização.

A política externa das grandes potências transformou-se numa indústria de eufemismos. “Exceção necessária”, “segurança nacional”, “resposta adequada”, “medida de contingência”. Termos que, quando traduzidos, significam apenas uma coisa: a velha tentação de tratar o outro como objeto negociável. A diferença é que agora essa lógica ganhou musculatura tecnológica.

Guerras são conduzidas à distância; sanções sufocam populações inteiras sem um tiro; vigilância digital atravessa continentes como se não houvesse limites; campanhas de desinformação moldam realidades paralelas.

Nesse ambiente, a incoerência virou método. Não é desordem: é estilo de governança.

Quando o exercício mental revela o absurdo

Diante desse cenário, surge às vezes um exercício mental inevitável: imaginar um mundo em que todos fossem tratados como palestinos — vidas suspensas entre fronteiras voláteis, cercos que se repetem, direitos reafirmados com a mesma frequência com que são negados. Logo depois, a imagem inversa: um planeta onde cada pessoa fosse vista como cidadã de um único país, a Terra, sem hierarquias invisíveis entre passaportes, línguas ou territórios. O contraste entre esses dois mundos evidencia o abismo entre a moral que proclamamos e as práticas que toleramos. É nesse intervalo que o princípio kantiano reaparece como obstáculo incômodo às justificativas fáceis.

Enquanto as potências encenam disputas que pretendem moldar o século, países médios tentam, por pragmatismo, não permitir que o sistema internacional entre em colapso. Brasil, México, Noruega, Indonésia, Índia, África do Sul: nações conscientes de que a estabilidade global não é favor, mas estrutura compartilhada. Por isso insistem em mediação, previsibilidade e respeito às normas — não por idealismo, mas por sobrevivência.

Esses países não aspiram regenerar o mundo, mas impedir que ele acelere rumo ao desastre.

A maior crise internacional de 2025 não é militar, nem econômica, nem humanitária. É moral. Democracias reivindicam exceções quando lhes convém. Autocracias exigem respeito a normas que violam com método. Plataformas tecnológicas pregam liberdade enquanto administram vigilância. Estados condenam atrocidades cometidas por adversários e silenciam sobre as próprias.

A humanidade tornou-se especialista em cobrar dos outros aquilo que evita praticar.

Diante desse panorama, a constatação é inevitável: a ordem internacional vigente não está apenas desgastada — encontra-se estruturalmente defeituosa e avança com pressa rumo à UTI ética descrita por Kant. Cada violação, cada guerra disfarçada de fatalidade, cada direito diluído por tecnicalidades jurídicas empurra o sistema para um estágio de inconsciência moral. Nesse ambiente, o imperativo categórico deixa de ser referência filosófica e passa a ser aviso clínico.

A humanidade já experimentou todas as formas de pragmatismo: dissuasão nuclear, alianças de ocasião, sanções devastadoras, retaliações preventivas, vigilância transfronteiriça. Falta testar a solução mais antiga — e a menos utilizada: agir de modo que nossas ações possam ser defendidas mesmo quando aplicadas a nós mesmos.

Não é generosidade. É uma forma de evitar que a política internacional se transforme em roleta russa permanente.

O imperativo categórico não acabaria com embates geopolíticos, mas impediria que se tornassem mecanismo automático de governação. Não aboliria desigualdades, mas evitaria que elas fossem justificadas como inevitáveis. Não erradicaria conflitos, mas impediria que sua continuidade fosse promovida como estratégia.

É pouco? Para 2025, seria uma revolução silenciosa.

E toda revolução moral começa do mesmo modo: com a decisão de agir corretamente — mesmo quando ninguém aplaude, mesmo quando todos duvidam, sobretudo quando o mundo inteiro parece caminhar na direção contrária.

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