Mistura explosiva entre igrejas e política partidária criou o inferno em que estamos
Religião instrumentalizada por máquinas partidárias transforma leis em dogmas, templos em comitês e cidadãos em soldados ideológicos
Washington Araújo - 29/12/2025


Há um erro de origem que precisa ser nomeado com clareza antes de qualquer crítica política: quando a religião entra na política para disputar poder, ela renuncia à sua própria razão de existir. E quando a política se apropria da religião para legitimar-se, abandona o solo comum da razão pública e da legalidade democrática.
O resultado não é apenas degradação institucional, mas desorientação espiritual coletiva. A democracia brasileira vive esse curto-circuito de forma cada vez mais visível: o púlpito transformado em palanque, o palanque disfarçado de altar, e a verdade reduzida a ferramenta de mobilização emocional.
Religião e política não são inimigas — mas pertencem a planos distintos da experiência humana. Devem coexistir como óleo e água: no mesmo recipiente social, sem jamais se confundir. A política opera no plano da organização externa da vida coletiva; a religião, no da transformação interior do ser humano. Uma cuida da administração do poder; a outra da formação do caráter. Quando essa fronteira é rompida, ocorre uma inversão perigosa: a fé passa a servir ao poder, e o poder passa a falar em nome de Deus. É como se uma mesa ou uma cadeira produzida pelo carpinteiro passasse a falar em seu nome. Existe algo mais tosco e ridículo do que isso?
A política, por sua própria natureza, é atravessada por disputas, negociações, interesses e estratégias. Ela precisa disso para funcionar. Mas justamente por isso não pode ser o espaço da elevação moral.
A religião, ao contrário, nasce para educar a consciência humana, não para vencer eleições. Seu papel histórico sempre foi o de criar ordem interior, promover tranquilidade social e despertar virtudes latentes que nenhuma lei consegue impor. Quando cumpre essa função, torna-se fundamento invisível da civilização; quando a abandona, transforma-se em superstição organizada ou em empresa de poder.
O velho axioma permanece implacável: não se constrói uma sociedade de ouro com indivíduos de chumbo. Nenhuma Constituição, nenhum tribunal, nenhuma maioria parlamentar substitui a ausência de virtudes básicas. Honestidade, veracidade, humildade, unidade, compaixão e senso de justiça não são meros ornamentos morais; são estruturas de sustentação da vida coletiva. Quando a religião se afasta dessa missão educativa para disputar hegemonia política, contribui diretamente para o empobrecimento ético que depois finge denunciar. E resulta no caos que está sempre batendo em nossas portas. Simples assim.
Os dados brasileiros ajudam a compreender a dimensão do fenômeno. O Censo Demográfico de 2022 revelou um país religiosamente mais plural: o catolicismo caiu para 56,7% da população; os evangélicos cresceram para 26,9%; religiões de matriz africana avançaram; e o grupo dos “sem religião” também aumentou.
Essa diversidade, em si, é saudável. O problema começa quando ela é convertida em ativo político, moeda eleitoral e instrumento de polarização.
O recorte etário aprofunda o alerta. O crescimento evangélico é mais intenso entre jovens, enquanto o catolicismo se concentra nas faixas etárias mais altas. Há, portanto, uma disputa explícita pelo futuro simbólico do país — simbólico aqui no sentido concreto de disputa por sentidos, valores, identidades coletivas e critérios morais que orientam o voto, o pertencimento e a lealdade social.
Quando lideranças religiosas entram no jogo partidário, sabem que não estão apenas pedindo votos, mas moldando visões de mundo. A fé deixa de ser caminho de amadurecimento espiritual e passa a ser tecnologia de mobilização política.
No Congresso Nacional Brasileiro, essa dinâmica ganhou forma institucional. A Frente Parlamentar Evangélica tornou-se uma das maiores articulações suprapartidárias, reunindo mais de duas centenas de parlamentares. Muitos mantêm vínculos orgânicos com igrejas, alguns ocupando cargos hierárquicos religiosos. Essa sobreposição não é neutra. Ela tensiona princípios republicanos básicos e fragiliza a distinção entre consciência pessoal e mandato público.
Essa distorção já havia sido antecipada pela filosofia clássica. Em Platão (428/427–348/347 a.C.), governar nunca significou favorecer classes, crenças ou facções, mas ordenar a cidade para que a felicidade alcançasse o conjunto da sociedade. Quando a política abandona esse princípio e passa a servir partes específicas, ela deixa de buscar justiça e passa a produzir desequilíbrio. Nesse vazio ético, discursos religiosos e identitários tornam-se atalhos convenientes para legitimar privilégios, dividir a cidade e mascarar interesses de poder com verniz moral.
Mas a crítica central não é política — é espiritual.
Quando textos sagrados são usados como slogans, quando o adversário vira inimigo de Deus, quando o voto se transforma em prova de fé, a religião deixa de ser luz e passa a ser instrumento de dominação moral e emocional. A história mostra que, sempre que isso ocorre, a espiritualidade definha e o fanatismo prospera. A religião, que deveria ser fonte de ordem e tranquilidade entre os povos, converte-se em fator ativo de conflito e divisão.
Há aqui um ponto decisivo: progresso material sem elevação espiritual produz civilizações eficientes, desiludidas e profundamente infelizes. O desenvolvimento técnico, desacompanhado de valores, amplia apenas a capacidade de errar em escala maior.
A verdadeira civilização nasce quando avanço material e maturidade espiritual caminham juntos — como lâmpada e luz. Separados, ambos fracassam: a lâmpada sem luz é inútil; a luz sem lâmpada não ilumina o mundo.
Por isso, a separação entre religião e política não é uma concessão secularista — isto é, não se trata de um gesto ideológico contra a fé ou de submissão da sociedade a um materialismo hostil à transcendência. Trata-se de uma exigência espiritual e republicana para proteger a religião da captura pelo poder e preservar a política do uso indevido do sagrado.
O Estado laico não é um Estado sem Deus; é um Estado que reconhece que nenhuma instituição humana pode falar em nome de Deus. Devemos acreditar, ter uma fé genuína e pura no Deus que nos criou — e não no Deus que nós criamos à imagem de nossas conveniências políticas.
Daí o desafio inevitável, que já não pode ser evitado com retórica piegas.
Que tal irmos direto ao olho do furacão que se a vizinha? Se muitas igrejas passaram a funcionar, na prática, como caixas eletrônicos informais para financiar campanhas, projetos de poder e interesses claramente corruptos, não será o momento de submeter essas estruturas ao mesmo rigor fiscal aplicado a qualquer organização que movimenta grandes volumes de recursos? Transparência não ameaça a fé; a protege. Investigar o caminho do dinheiro — do dízimo ao destino final —, apurar sonegação, lavagem e eventuais vínculos com economias criminosas não é perseguição religiosa, mas dever republicano. Em rápidas palavras: se a as igrejas entram na política, nada mais justo que a Receita Federal entre nas igrejas. Entendo que esse é o momento para uma operação carbono específico.
Religião não existe para conquistar governos, mas para formar consciências. Quando se esquece disso, ela perde sua força transformadora e trai sua missão histórica. E aqui afirmo, sem hesitação, como crença inabalável: confio no ensinamento do Prisioneiro de ‘Akká — Bahá’u’lláh (1817-1893) — de que a religião é o instrumento principal para o estabelecimento da ordem no mundo e da tranquilidade entre seus povos. Justamente por isso ela não pode ser rebaixada a ferramenta eleitoral.
Uma sociedade que sacrifica sua base espiritual no altar do poder pode até vencer eleições — mas perde a alma no processo. E se perde a alma, nada mais importante falta ser perdida.
