Nunca mais um país ajoelhado diante de quartéis

O 25 de novembro refunda o pacto democrático. Hierarquia militar não é salvo-conduto para violar eleições, intimidar instituições e afrontar o Estado de Direito

Washington Araújo - 26/11/2025

Há dias que reorganizam a memória coletiva — pelas luzes que acendem, pelos fantasmas que expulsam, pelas fronteiras que redesenham na consciência nacional.

O 25 de novembro de 2025 entra nesse registro raro. Não por revanche, não por espetáculo, não por catarse. Mas por algo mais simples, mais duradouro e mais difícil: pelo restabelecimento do óbvio. Pelo triunfo do que deveria ter sido inegociável desde sempre: a democracia como linha de chegada e ponto de partida, como pacto civilizatório e como limite impermeável à sanha destrutiva de quem tentou capturá-la.

Os golpistas, enfim, chegaram ao fim do caminho.

O Brasil, finalmente, chegou ao começo de outro.

A cena que diz tudo

Os meios de comunicação anunciaram, finalmente, aquilo que a História vinha ensaiando, mas não tinha coragem de afirmar em voz alta: Jair Bolsonaro começou a cumprir pena de 27 anos e três meses por golpe de Estado.

A frase seria improvável, se não fosse verdadeira. Seria ficção, se não fosse documento. Seria exagero, se não fosse sentença transitada em julgado. Game over. Fim do jogo.

A notícia correu o mundo e veio acompanhada de outra, inédita na República brasileira: militares de alta patente presos por atentado à democracia. Não eram personagens menores. Eram almirantes, generais, um ex-chefe da Defesa, um ex-chefe do GSI, o ex-comandante da Marinha, um ex-ministro da Justiça. O coração do Estado, usado como arma contra o próprio Estado.

Agora, desarmado.

Alexandre de Moraes — alvo preferencial de quem confundiu bravata com coragem — assinou o despacho que a História cobrava. E o fez com 29 páginas de fundamentos, provas, citações jurisprudenciais, recapitulação processual e uma frase que encerra uma era: “Inexistem recursos cabíveis.”

Para um país traumatizado por golpes reais, tentativas veladas e ensaios frustrados de quartel, essa sentença é quase literária: o ponto final de um capítulo muito mal escrito por mentes e mãos irresponsáveis.

Mas não havia metáfora nessa tarde de 25 de novembro. Havia documentos. Havia certidões. Havia mandados. Havia escoltas. Havia algemas invisíveis de legalidade que finalmente se fecharam.

Lamento que meu pai — o bom agrônomo, historiador e advogado Adonias Bezerra de Araújo — não tenha vivido até esta data para testemunhar o desfecho vergonhoso que nossa história impôs a si mesma. Nasci no Rio Grande do Norte e passei os primeiros seis anos de vida nos cafundós do Judas, no interior paranaense. Minha família não fugiu do calor ou do cansaço; fugiu da ditadura militar de 1964, que empurrou vidas inteiras para longe das suas raízes.

Fui uma planta agreste transplantada para um terreno de geadas severas, e naquele frio aprendi que o arbítrio tem cheiro, peso e cicatriz.

Conheço na pele o que um Estado ditatorial pode fazer quando se julga acima da lei, quando confunde poder com punição, quando trata famílias como números descartáveis.

Ainda assim, naquele desterro gelado, aprendi com meus pais que não havia espaço para ressentimento nem ódio. O que havia, e permanece até hoje, era a obrigação de lutar por direitos humanos, dignidade e proteção das minorias — sempre pelo caminho do pacifismo, sempre acreditando que justiça não é vingança, mas reparação moral do que fomos obrigados a viver. Talvez por isso seja, desde sempre, apartidário. Quero sempre a liberdade de poder pensar por mim mesmo.

A solidão de um líder derrotado pelos próprios atos

Bolsonaro recebeu o oficial de justiça às 16h40. Assinou. Calado. O homem que outrora vociferava contra urnas, ministros, jornalistas, mulheres, governadores, vacinas e fatos — agora falava apenas quando autorizado. Seus filhos o visitaram, um por vez, como quem visita um parente que insistiu em acreditar que a democracia era um obstáculo, e não um teto protetor.

A esposa, Michelle, pediu para visitá-lo no dia seguinte. E, sem grande alarde, a vida seguiu seu percurso burocrático: atos publicados, decisões notificadas, custódias agendadas. O Brasil não parou como queriam alguns tresloucados. É assim que democracias respondem a quem tentou destruí-las: com papéis, não com porretes; com audiências, não com ameaças; com ritos, não com armas.

Bolsonaro está inelegível até 2060.

Até lá, o país terá mudado, a geração que hoje vota estará se aposentando, e seus netos talvez estudem em aulas de História aquilo que ele próprio não conseguiu ler enquanto escreveu — na prática — o infame manual do golpismo fracassado.

Os generais, enfim, diante da lei

Augusto Heleno, general do Exército, que tratava a Constituição com a intimidade de um bedel de quartel, agora presta exames de corpo de delito.

Paulo Sérgio Nogueira, general do Exército, que deveria proteger a hierarquia e a disciplina, foi levado para uma sala separada em um prédio militar, sob custódia.

Almir Garnier, almirante, que à frente da Marinha viu o país dividido e escolheu a pior margem do rio, agora cumpre pena em uma estação de rádio da Marinha.

Braga Netto, general do Exército, o homem que tentou transformar poder em blindagem, dorme em uma cela especial na Vila Militar, no Rio de Janeiro.

Todos os que deveriam ser o freio foram justamente o acelerador de uma aventura que desrespeitou a liturgia, a memória institucional e a inteligência nacional.

Não foram presos por divergirem de decisões políticas. Foram presos porque participaram de uma trama criminosa para derrubar um resultado eleitoral. Não se trata de opinião. Trata-se de sentença.

E ela não foi escrita em um canto escuro.

Foi lavrada pela mais alta corte do país, depois de dois anos de provas, testemunhas, delações, contraprovas, perícias, votos, audiências e contraditório pleno. Desde 18 de dezembro de 2023 até aquele fim de tarde de 2025, tudo foi registrado, examinado, impugnado e decidido — como manda uma democracia que pode até apanhar muito, mas não cai.

O foragido, a delação e o país diante do espelho

Alexandre Ramagem, delegado da Polícia Federal, agora deputado sem mandato, escolheu Miami como refúgio e fantasia como argumento. Não voltará tão cedo. A Justiça brasileira pede sua prisão. Os EUA assistem, diplomáticos, ao ex-policial federal transformar fuga em currículo.

Mauro Cid, coronel do Exército, que tentou proteger o chefe com a submissão de um escudeiro medieval, acaba perambulando entre o regime aberto e a lembrança de um país que ele ajudou a quase incendiar. Sua delação premiada faz parte das provas que derrubaram a farsa. As noites de sexta-feira em que Cid não pode sair de casa talvez sejam a metáfora perfeita: pequenas prisões para quem ajudou a construir grandes ameaças. Entrou para o Programa Federal de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Provita).

A Justiça foi lenta? Foi rápida? Foi dura? Foi branda?

A pergunta importa menos do que outra: foi justa?

E a resposta, ao contrário do que esperam os que insistem em ver perseguição onde há apenas consequência, é simples: Sim, foi.

Porque ninguém está acima da lei.

Porque generais respondem por seus atos — não pelos seus uniformes, suas fardas, suas medalhas militares.

Porque ex-presidentes cumprem sentença — não cumprem rituais de imunidade.

Porque as instituições foram testadas e preferiram o caminho mais difícil: o da legalidade.

José Múcio, ministro da Defesa, resumiu o momento com uma frase que deveria ser moldura de parede institucional: “Os CPFs estão sendo responsabilizados e as instituições preservadas.”

É exatamente isso que diferencia democracia de vendetta: a regra aplicada ao indivíduo, não à corporação.

O país que tentou ser sequestrado

A tentativa de golpe não foi um delírio coletivo. Foi uma organização criminosa com metas, hierarquia, tarefas, estratégia e execução. Não começou com atos descoordenados. Começou no Alvorada, nos discursos inflamados, na desinformação metódica, nas reuniões com embaixadores, nas lives paranoicas, nos militares que confundiram disciplina com devoção pessoal, e nos advogados que trocaram o Direito pelo delírio jurídico, que confundem o príncipe de Maquiavel com o Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry.

O Brasil esteve perto do abismo — não por acaso, mas por planejamento minucioso, ardiloso e mal-ajambrado.

O que se encerra agora é o processo judicial.

O que ainda precisa começar é o processo civilizatório de compreender como chegamos tão perto do pior.

Os que se indignam porque a lei se cumpriu

Flávio Bolsonaro, senador, como era previsível, pediu prisão domiciliar para o pai. Não pediu isso quando seu pai ameaçava ministros. Não pediu isso quando seu pai inflamava quartéis. Não pediu isso quando seu pai queria usar as Forças Armadas como muleta política. E não pediu isso quando seu pai dizia que direitos humanos são coisa para vagabundos.

Pede agora, quando a lei encontrou o escorregadio destinatário.

A democracia não funciona como herança familiar.

Funciona como espelho: reflete apenas os atos. Arthur Schopenhauer advertia que a liberdade termina no instante da escolha; dali em diante, somos cativos das consequências que ela produz.

E não deu outra.

O Brasil que emerge do outro lado

A execução da pena não é vitória de um lado sobre o outro. Não é triunfo da esquerda, nem desforra da mídia, nem revanche de ministros do Supremo. É, sobretudo, a vitória da legalidade sobre a ilegalidade. É uma lição dolorosa, mas necessária: quem atenta contra a democracia acaba no banco dos réus — e permanece ali até que a Constituição dê a última palavra.

O Brasil não está dividido entre quem gosta ou não gosta de Bolsonaro. Chega de falsos maniqueísmos. Somos capazes de elaborar a história de forma coesa, coerente e fluida.

Está dividido entre quem entende e quem não entende que não existe projeto político possível fora do Estado de Direito.

E quem não entende talvez precise estudar o dia 25 de novembro de 2025 como se estuda um terremoto: não para temer o próximo, mas para se precaver dele.

O que realmente termina hoje

Termina o processo.

Termina a ilusão de impunidade dos que acreditavam que patente é salvo-conduto.

Termina a fábula dos que vendiam patriotismo enquanto negociavam a democracia no mercado negro das instituições.

Termina o ciclo dos que achavam que a História lhes devia permanência.

Termina o país infantilizado pelo discurso da força.

Termina — enfim — a época da irresponsabilidade.

E começa, com todas as dores, custos e traumas, a única página que interessa: a da reconstrução da confiança.

A democracia não venceu porque é forte.

Ela venceu porque é insistente.

Ela venceu porque, mesmo ferida, escolheu sobreviver.

E, no fim das contas, é isso que separa o Brasil que cai do Brasil que levanta: a capacidade de reconhecer que a lei não é uma ameaça — é o que restou de civilizado entre nós.

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