O idioma sitiado — entre a ocupação inglesa e o clamor da última flor do Lácio

Cada click cede território; listei 701 termos ingleses neste texto — deu trabalho. Se não defendermos a língua agora, despertaremos estrangeiros dentro do próprio vocabulário nacional, exilados em casa.

Washington Araújo - 09/12/2025

Quando escrevo estas linhas, recebo uma notificação no smartphone, chega um e-mail, acende o alerta de meeting no Zoom, alguém me manda um link com um post no feed, peço um print, “manda no WhatsApp, por favor”, e volto a encarar esta folha que já não é folha — é notebook, app, website, drive, nuvem e backup.

A língua portuguesa respira, treme, perde e ganha músculos diante dessa avalanche de anglicismos que transformam nossa fala num grande update cultural. Somos brasileiros; misturamos jeans com short, calça Lee com camisa branca, vintage com trendy, love com saudade, hello com “Oi, tudo bem?”. Pintamos o cotidiano com pincel bilíngue, às vezes sem notar.

Outro dia, no café, duas meninas comentavam um story que viralizou com memes, trolls e haters. “Dá um share! Quero printar e mandar pro crush”, dizia uma. Ao lado, um senhor lia jornal no tablet; atrás, um gamer reclamava do skin caro e prometia upgrade no setup. Na bancada, a barista ajustava o hair com presilha dourada — fashion, confiante.

Vivemos no delivery, pagamos no drive-thru, atravessamos o shopping center como quem entra em catedral de consumo, paramos no shop de importados e voltamos para o home office — ou melhor, para o famoso “Rome Office”, dito com sotaque que tenta transformar chinelo em dress code. Nosso inglês tropical tem sabor de pão na chapa com bacon metafórico.

No trabalho, o léxico virou campo minado: deadline, briefing, feedback, brainstorming. Contrata-se freelance, frila para os íntimos, abre-se startup, celebra-se mentoring, recorre-se a coach e corre-se para entregar relatório antes do deadline final.

Planejamos podcast, criamos playlist, devoramos streaming, fazemos login, redefinimos password, logout só quando o burnout nos derruba. O job exige fluência em inglês emocional. Na política, fala-se de income, tax, tariffs, commodities, best seller de planos econômicos que sobem e descem feito rollercoaster. Pegamos Uber para ir ali na esquina — andar virou atividade vintage.

Mas convém lembrar: essa invasão não é de hoje.

Nossos avós já tomavam drink no coquetel do clube, pediam filé ou bife, brindavam com rum, ouviam show no rádio e torciam pelo recorde do atleta. Vibravam com futebol, gol, pênalti, drible, surfe, voleibol, beisebol; jogavam pôquer nos fundos de algum bar. Compravam abajur para a sala, vestiam suéter, short, tênis novo no Natal. Iam ao trailer antes do filme, faziam piquenique, folheavam revistas no bufê. As moças comentavam flertes; os rapazes admiravam iate no lago. Córner, ringue, uísque.

Nada disso soava invasão — era assimilação lenta, com sotaque lusófono. Na padaria e depois no shopping, comiam sanduíche, passeavam ao som da bossa nova e observavam o playboy de terno claro brilhando no sol de janeiro.

Mas agora, o que era convivência virou ocupação. Não é empréstimo, é takeover. Se o idioma é nação, vivemos migração clandestina pelas fronteiras da fala.

Aceitamos sem negociar. Rimos orgulhosos de pronunciar coffee break com R arranhado, acreditando que duas sílabas inglesas valem mais que quatro portuguesas. Há nisso um complexo de vira-lata turbinado, vaidade que troca chão firme por tapete importado. Abrimos mão da farta herança do português — essa “última flor do Lácio”, resistente como árvore no sertão — e a oferecemos ao deus do marketing em troca de curtidas.

E aqui surge a pergunta que evitamos formular: devemos instituir uma lei federal que limite o uso indiscriminado de estrangeirismos em documentos oficiais, governamentais, acadêmicos, literários e educativos? Aliás, por onde anda nossa Academia Brasileira de Letras? Será que tem algo a dizer sobre isso? Duvido muito.

Não para proibir o mundo — mas para garantir que o Brasil continue reconhecendo sua própria voz. Língua é mais que ferramenta — é território.

Quando perdemos as palavras, perdemos o mapa. Simples assim.

É irônico imaginar Camões tweetando “Love é fogo que burns sem se ver”, ou Machado escrevendo “Ao winner, as batatas”, e ainda Drummond murmurando “And now, John Doe?” num beco sem saída digital, como se o destino tivesse botão reset. Fernando Pessoa confessaria “Tenho em mim todos os moods do mundo”, metade Lisboa, metade cloud. Eça descreveria “uma elite muito fashion, com status e pose de selfie aristocrática”, e Clarice sopraria “Liberdade é um feeling que quase dói”. Já Guimarães Rosa talvez dissesse: “Viver é perigoso — hard mode, meu amigo — as veredas têm checkpoint invisível para quem ousa escutar o mundo”. Rimos — mas é riso pálido, riso de quem percebe tarde que as muralhas do idioma foram violadas.

Nas praças digitais, cada click é um voto linguístico. Talvez devamos lembrar que “bom dia” continua mais generoso que hello, que “até logo” aconchega mais que bye, que “vamos conversar?” derruba muros que chat não derruba.

Não proponho muro — proponho ponte. Deixar entrar, mas não se extraviar. O idioma é casa: pode ganhar upgrade, Wi-Fi, smart home, mas deve responder ao toque do português que nos funda. Porque nenhum delivery substitui pão quente dito como pão quente.

E, convenhamos, se o futuro é global, raízes não fazem logout — permanecem, teimosas, mesmo quando o mundo insiste em download do novo.

Que não sejamos povo que troca sua própria voz por eco estrangeiro: o idioma que herdamos não é moda passageira — é eternidade em estado de palavra.

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