Quando a toga aceita carona, a democracia inteira paga a viagem
No Brasil, o desafio central não é escrever normas, mas garantir execução, controle e consequências, num tribunal que ocupa o topo do Judiciário
Washington Araújo - 26/12/2025


Nas últimas semanas, voltou ao centro do debate público a ideia de criação de um código de conduta e de ética para os ministros do Supremo Tribunal Federal. A iniciativa, em si, é legítima e necessária. Tribunais constitucionais não vivem apenas da força normativa de suas decisões, mas do lastro simbólico que sustenta cada voto, cada gesto público e cada silêncio institucional.
O momento é mais do que oportuno para se debater o assunto.
Nos últimos 90 dias, vieram a público episódios que colocaram o STF sob intenso escrutínio: ministro realizando viagem internacional em jato particular de empresário com interesses no tribunal; outro tendo o escritório de advocacia da esposa envolvido em questionamentos sobre honorários mensais elevados; outro ainda promovendo seminários recorrentes em Lisboa, com frequência difícil de justificar institucionalmente.
Em vários desses eventos, figuraram como convidados advogados, empresários e agentes com causas em tramitação no Supremo. O acúmulo desses fatos não constitui prova automática de ilegalidade. Mas produz algo igualmente grave para uma Corte constitucional: a naturalização de zonas cinzentas onde a fronteira entre independência judicial e conveniência relacional passa a parecer flexível demais para um tribunal que decide destinos políticos, econômicos e institucionais do país.
É inegável — e digno do maior número de aplausos possíveis — o papel firme, consistente e assertivo desempenhado pelo Supremo nos últimos anos para evitar que o Brasil revivesse um novo 1964. Ao conter aventuras autoritárias e afirmar o Estado Democrático de Direito, a Corte prestou um serviço histórico às atuais e às futuras gerações.
Justamente por isso, à medida que cresce o respeito institucional, precisam crescer também aquelas virtudes hoje tratadas como peças de museu, com cheiro de naftalina, mas que deveriam colocar os onze ministros acima de qualquer suspeita razoável. Postura, compostura, liturgia do cargo e discrição não são adereços simbólicos: são fundamentos invisíveis da autoridade judicial.
Nesse ponto, a discussão ética precisa ir além do comportamento individual e alcançar virtudes estruturais.
Integridade — entendida como honestidade pessoal e funcional inegociável — deve ser absoluta, não apenas real, mas perceptível.
Imparcialidade exige equidistância concreta de partes, grupos econômicos e agendas ideológicas.
Independência, por sua vez, não se proclama: pratica-se diariamente, resistindo a pressões políticas, midiáticas ou sociais que tentam capturar a decisão judicial por atalhos informais.
Há ainda virtudes de temperamento e equilíbrio que moldam o modo como a autoridade se manifesta. Vejamos rapidamente algumas:
Serenidade em ambientes de alta tensão, prudência nas palavras, especialmente fora dos autos, moderação no tom e ponderação diante do dissenso não são sinais de fraqueza — são expressões de maturidade institucional.
Quando ministros trocam sobriedade por protagonismo retórico, a Corte perde densidade e o debate público ganha ruído que rapidamente pode se transformar em ondas e mais rápido ainda em tsunamis institucionais.
Por fim, existem virtudes relacionais e de decoro que sustentam a respeitabilidade do cargo.
Urbanidade e cortesia não são concessões pessoais, mas deveres funcionais.
Reserva diante de temas políticos e processos em curso protege a imparcialidade futura.
Sobriedade na vida pública e privada evita a confusão entre prerrogativa e privilégio.
E o decoro, talvez o mais subestimado de todos, exige recusar condutas que, embora legais, comprometam a dignidade simbólica da função constitucional exercida.
Observar experiências estrangeiras ajuda a iluminar esse caminho. Cortes constitucionais consolidadas adotam códigos de conduta baseados menos em punição e mais em autocontenção rigorosa. O princípio é simples: evitar não apenas conflitos reais, mas qualquer situação que gere dúvida razoável sobre a independência do julgador. Trata-se de preservar a autoridade antes que ela precise ser defendida.
O desafio brasileiro, contudo, vai além da redação de normas. O STF ocupa o topo da hierarquia do Judiciário e não está submetido a instâncias superiores no mérito. Sem mecanismos claros de transparência, acompanhamento e resposta institucional, qualquer código corre o risco de virar ornamento discursivo.
Ética sem consequência é retórica vazia e tratar de separar o joio do trigo é essencial.
O debate sobre conduta não pode servir de biombo para ataques oportunistas. O Supremo incomodou interesses poderosos ao julgar e sentenciar golpistas. Parte da classe política e da grande imprensa aguarda apenas o pretexto para lançar denúncias vazias, montadas no velho “minha fonte me disse”, buscando constranger a Corte por saturação.
Esses sentimentos baixos estão mais vivos do que nunca, são como cobras esperando para dar o bote.
Se o STF decidir avançar nesse debate, que o faça com seriedade, critérios verificáveis e compromisso real com a autovigilância. Porque autoridade constitucional não se impõe apenas por decisões — ela se preserva, todos os dias, por comportamento. E quando a toga relaxa, é a democracia inteira que fica exposta.
Resumo da ópera o STF protegeu a todos nós contra horrores inimagináveis. Cabe agora, a todos nós, instituições e sociedade civil organizada, protegê-los deles mesmos.
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