Bergman e a condição humana diante da noite que cai

Washington Araújo - 24/12/2025

Embora Ingmar Bergman seja um dos meus cineastas favoritos — pioneiro absoluto na direção e no roteiro, além de um pensador rigoroso da condição humana — não consigo aceitar integralmente a verdade de um pensamento tão sombrio quanto o que ele formulou em um de seus textos mais conhecidos. Há ali uma lucidez incontornável, mas também uma generalização que me parece excessiva, profundamente marcada por sua trajetória pessoal, por uma infância rígida, por culpas religiosas duradouras e, sobretudo, por um século XX empenhado em revelar as faces mais destrutivas da humanidade. Não é uma recusa leviana: é um desconforto refletido, amadurecido, que nasce do respeito pela obra e não da negação de sua força.

Bergman escreve, sem adornos nem concessões, como quem retira camadas até atingir o osso do pensamento:

O mundo é um antro de ladrões, e a noite está caindo.

O mal quebra suas correntes e corre pelo mundo como um cachorro louco.

O veneno nos afeta a todos.

Ninguém escapa.

Portanto, sejamos felizes enquanto somos felizes.

Sejamos gentis, generosos, afetuosos e bons.

É necessário e nada vergonhoso desfrutar do pequeno mundo.”

Lido em sua inteireza, o pensamento ganha densidade e coerência internas. Não se trata de frases soltas, mas de um raciocínio contínuo: primeiro o diagnóstico duro, depois a constatação de que ninguém está imune, e por fim uma resposta possível — não redentora, mas viável. O mal, em Bergman, não surge como abstração metafísica, e sim como prática recorrente, cotidiana, normalizada. O “veneno” ao qual ele se refere é justamente essa capacidade humana de se acostumar à brutalidade sem mais questioná-la, de aceitar o intolerável como parte da paisagem.

O que inquieta é perceber o quanto esse pensamento encontra ressonância no presente. Guerras normalizadas, discursos que legitimam a exclusão, indiferença social e uma fadiga coletiva permanente criam a sensação de que a noite descrita por Bergman não pertence apenas ao passado. Ela reaparece, com outros nomes e rostos, sustentada por tecnologias, algoritmos e narrativas que diluem responsabilidades e anestesiam consciências. Ainda assim, sua conclusão desloca o eixo da análise. Ao defender a gentileza, o afeto e o direito ao pequeno mundo, ele não propõe fuga nem ingenuidade, mas uma escolha consciente diante do endurecimento generalizado das relações.

Essa tensão atravessa toda a sua obra cinematográfica. Em O Sétimo Selo, a morte joga xadrez com um homem que ainda busca sentido, numa Europa devastada e silenciosa. Em Morangos Silvestres, a memória se transforma em espaço de acerto de contas e possibilidade tardia de reconciliação. Em Gritos e Sussurros, a dor extrema convive com gestos mínimos de cuidado que, mesmo breves, preservam a experiência humana e impedem que ela se reduza ao desespero absoluto.

Talvez seja justamente aí que eu me afaste de Bergman. Não porque ele esteja errado ao diagnosticar a escuridão, mas porque acredito que há mais fissuras de luz do que ele admitia. A humanidade tropeça, repete erros e flerta perigosamente com o abismo, mas não se resume a ele. O gesto ético, pequeno e silencioso, continua sendo uma forma poderosa de contrariar o pessimismo histórico. Preservar gestos simples, atentos e humanos não é ingenuidade: é uma recusa ativa à brutalidade como regra.

Revisitar Bergman hoje é reconhecer a força de sua advertência — sem transformar sua escuridão em destino inevitável. É aceitar o alerta, mas insistir na escolha. Gentileza como resistência, afeto como método, humanidade como decisão diária, mesmo quando a noite insiste em cair.

https://revistaforum.com.br/opiniao/bergman-e-a-condicao-humana-diante-da-noite-que-cai/